10 outubro 2006

A lâmina de Occam

Sabem, penso nas numerosas perguntas que amiúde me colocam os estudantes, os amigos, os desconhecidos, a propósito não importa de que tema.
E eu, pobre de mim, que regra geral tenho as dúvidas e a ignorância como refeições diárias!
Mas penso, penso, por exemplo, no belo princípio da lâmina de Occam: os múltiplos não devem ser usados sem necessidade.
Se tens uma hipótese, não queiras duas; se tens uma estrada, não lhe cries caminhos vicinais; se há gordos, é porque comem de mais; se os ladrões actual impunes, é porque a polícia é inepta; se os estudantes têm más notas, é porque não estudam; se és professor, é porque sabes tudo; se tens dores de dentes, é porque tens um dente cariado; se tens ideias contrárias às minhas, é porque não gostas de mim; se és camponês e vens para a cidade, é porque a cidade te atraiu; se alguém foi linchado, é porque era um criminoso; se morrem duas crianças no bairro, é porque um xicuembo está à solta.
Alguém põe em dúvida tão sacrossantos princípios dedutivos do nosso dia-a-dia, enfeitados com o nosso querido e simples porque, fertilizados pela alma occamiana?
É com o princípio de Occam, com esse princípio aticamente simples, que penso quanto as pessoas exigem, penso quanto todos nós exigimos respostas imediatas para problemas complexos, respostas que tenham a simplicidade dos troncos e que arredias estejam da confusão dos galhos das árvores, penso na nossa sede de causas imediatas e de respostas prontas a servir. Penso na sede de cada um de nós daquilo a que Charles Peirce chamava "estado de crença", sejam quais forem os problemas e os ângulos desse estado.
O que é conhecimento senão uma bofetada permanente de certeza na malfadada face da dúvida? Desmiss make believe, o famoso princípio de Peirce. Mas como obter isso, como não procurar as verdades últimas?
Penso, enfim, na sociologia, nesta fantástica ciência para a qual desde Comte muitos procuram as leis que façam entender e domesticar todo este nosso social.
Eu, pobre de mim, que regra geral apenas tenho as dúvidas e a ignorância como refeições diárias! Mas que, afinal, também como vós, tenho a permanente sede de crença, essa sede de cidadão que se infiltra, insidiosa, na frieza frágil do sociólogo, sociólogo ele também um crente em graça.
Enfim, estou crente de que não tomareis este texto como uma traição ao Occam, como uma facada complexa na simplicidade. O riso é um excelente tempero sociológico, sabem?

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